EU DISSE QUE GOSTAVA DE DIÁRIOS?

Fotografia, Suzana Guimarães
Data: Junho de 2020


terça-feira, 28 de abril de 2020


Sobre sábado ao  meio-dia, em downtown. Desci do carro do meu marido para comprar água e ele então daria a volta no quarteirão para me buscar porque perto da estação do metrô não tinha como parar. Deixei minha bolsa no carro e saltei. Foi assim que o sujeito bêbado se deparou comigo, quando eu acabava de caminhar pelo quarteirão e chegava na esquina de duas avenidas. Tudo estava deserto, mas havia movimento dos trens. Vi duas pessoas sentadas, esperando não sei o quê, aquela gente sempre ao lado de pacotes, parecendo sempre de mudança. Ele se dirigiu a mim, perguntou se eu tinha dinheiro, eu atravessei a rua, fui para a direita, ele foi junto, eu voltei, ele, também;  diminuí o passo ao voltar para a esquerda, ele, também. Eu não desviava os olhos dos dele, apenas esperava seus movimentos. Ele não queria dinheiro. Queria se divertir com a minha cara. Foi quando o anjo mais negro que a mais negra noite sem lua voou para cima dele, foi assim que vi, como comentei ontem, voltei lá para entender, ele saltou da plataforma do metrô para cima dele. Deu-se um branco. Só vi o colarinho da camisa dele, xadrez em vermelho e preto, camisa de manga curta, pois eu vi seu braço partindo para cima do sujeito, também negro, mas mais claro, mais baixo, mais velho, barrigudo e bêbado. Corri. Voltei para onde eu tinha saltado do carro. Enquanto corria, eu ouvia os gritos dos dois, o anjo chegou aos berros, aos gritos e aos sopapos. Eu nem disse Thank you... naquele momento, pensei se tudo aquilo seria teatro, uma tentativa de me confundir, como faz a bandidagem em Belo Horizonte, pensei também que aquilo poderia atrair mais pessoas para a briga, então corri. Se alguém pudesse sentir a solidão do mundo, esse alguém era eu naquele momento. Não tinha nada aberto para eu me esconder. Passei o local que havia combinado com meu marido e continuei correndo para parar perto de três homens numa fila de um caixa automático. Foi quando liguei para o meu marido. Mas ele não entendeu onde eu estava e se perdeu também. Foi quando vi o sujeito caminhando menos trôpego em minha direção. Para onde tinha ido R? Atravessei a avenida. Liguei para ele mais duas vezes, aos berros. Entendi então que havia sido aquilo mesmo: o cara me defendeu, sim, e depois seguiu o caminho dele. Avistei R, atravessei a avenida correndo e entrei no carro dele. Não pensei em voltar ao local para tentar agradecer... fiquei atônita. Queria só voltar para casa.

Mas eu agradeci mesmo quando não estava entendendo nada. Ontem, eu dormi digitando isso, hoje, penso nele e faço meu silêncio, sou silêncio, sou a noite lá fora, uma cadeira vazia, debaixo da árvore, à espera.