EU DISSE QUE GOSTAVA DE DIÁRIOS?

Fotografia, Suzana Guimarães
Data: Junho de 2020


quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Eu ser bruxa não é figura de linguagem.


“Para de ligar todo dia”


Apesar de detestar conversar ao telefone, eu ligava, sim, todos os dias porque eu queria agradar, compartilhar, e, principalmente, entreter. Sempre tive vida cheia e agitada, mas eu tinha tempo porque eu queria. Eu fazia por amor, nunca foi por dependência. Ah, sou um pássaro livre! Sou um corvo! Além da cor e dos voos, retribuo amor. Então, telefonar todos os dias ou quase era assim, como os corvos, a minha gratidão, meus presentinhos com brilho - e foram tantas as conversas, alegres, tristes, esperançosas, irritadas, bravas, de alertas, e era o que eu podia dar devido à distância.

Eu só queria amar e ser amada.

E dizer que eu não vejo cifrões em pessoas, nunca, e dizer que é triste viver pensando assim, pensando ser sinônimo apenas de dinheiro, como era repetidamente dito a mim.

Eu não queria telefonar. Nunca quis.

Outubro, 31

* Não tenho mais idade para um certo tipo de desapontamento.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

O macaco de uniforme


Um dia, eu vou entender os mistérios que levam pessoas menos inteligentes, comprovadamente menos capazes, maniqueístas, atoladas em alardeados preconceitos e que sequer despistam e que sequer mostram arrependimentos, quase sempre exímias na arte da mentira, comprovadamente fracassadas no currículo da vida, pessoas que nada construíram, nem filhos, nem livros, nem ideias, nada, nada, quais são esses mistérios que lhes concedem o direito de decidir sobre os destinos e corações alheios, sobre o bom e o mau, sobre as riquezas e as pobrezas, sobre a vida dos outros? 


sábado, 26 de outubro de 2019

Poema de Eugénio de Andrade

É URGENTE O AMOR
Eugénio de Andrade - (1923-2005)

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

A morte do meu sogro desencadeou em mim a morte do meu pai que foi há seis anos. Quantas vezes meu pai irá falecer?

Hoje, eu fui ao salão para cortar meu cabelo. Meu cabeleireiro e eu perdemos um amigo em comum há dez meses. Falávamos sobre a morte dele. Nessa hora, sem que eu soubesse, meu sogro falecia em um hospital de Belo Horizonte.

A morte é uma senhora presente nas bocas dos vivos.

Outubro, 24

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Não se morre duas vezes. Uma vez basta.

Bula de remédio


Figura A tocando o braço de figura B dirige-se a figura C: 
_ Está com inveja? 

Figura D abre o braço de pássaro sobre C e diz assim, no tiro à queima-roupa:

_ Figura C não precisa.

Tive, durante um ano, reiterados sonhos em que pessoas me diziam para eu abrir os olhos e enxergar. Eu tentava e isso me causava dores. O máximo que eu via era um clarão. Agora, passo por situações que me mostram que eu realmente tinha os olhos fechados.

Sobre um brasileiro babaca


Até hoje, eu nunca tinha ouvido falar de Mc Gui. Melhor seria morrer sem saber. Cara, você é aquele brasileiro babaca que ri das pessoas nas ruas, nos shoppings, nas praias, em todo lugar porque gosta de fazer gracinha para os amigos por causa da aparência física de gente que você nem sabe quem é e o que vive. Depois, por hábito e falta mesmo de caráter ou alguma empatia ou os dois, vai para o exterior rir da cara de quem não vive dessa maneira. Cara, você precisa nascer de novo pois já tomou bomba nesta vida.

Deve ser ótimo ter alguém como eu correndo atrás.

domingo, 20 de outubro de 2019

Sou Suzana


A pessoa que pensa que posso ser destratada não precisa conviver comigo. Aos 53 anos, sou quase uma velha e amo-me! Amo-me! Tudo que sou foi graças a mim, então, quando falar comigo não levanta a voz. Não levanta o braço para mim. Contenha-se. Sou quase uma velha. Não mendigo mais amor. Só exijo respeito.

Sem tempo para rainhas. 

Sou Suzana. Desafio reis. 

Fiquei livre daquele dedo sempre apontado para mim.

sábado, 19 de outubro de 2019

Texto de Cássio Zanatta.

Da hora
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.
.
     "Chega uma hora em que não é mais desconcertante rever o grande amor. Mais provável ser atropelado na ciclofaixa. Tempo dos cabelos irem desistindo pelo caminho, das ilusões respirarem por aparelhos e de se munir de toda a paciência que resta, quando alguém discute política como se fosse a coisa mais importante.
      O tempo de tudo que ainda for possível. Da urgência de experimentar uma fruta desconhecida. Caminhar por uma cidade onde nunca se esteve. Hora de dar menos autoridade ao despertador e de ficar horas matutando, tentando se lembrar do nome do colega de Ginásio. Quando o dia resolve ter a duração de 19 horas e cada sete anos passam a caber em cinco. Da sesta mais por obrigação que por opção.
      Descobrir que já leu o livro depois de 282 páginas, faltando apenas 17. Ter todo o tempo do mundo para ir a Machu Picchu, mas ter imensa preguiça de subir aquele tanto. Fazer com o molho na camiseta o que Pollock fazia com as tintas na tela. Esquecer as caneladas e achar que tudo foi leve e bom.
     A hora em que toda gratidão humilha qualquer obrigação.
     Quando se leu tanto livro, meu Deus, e de cada ida à livraria nasce uma aflição do tanto que ainda se quer ler, mais o remorso de nunca ter lido Joyce. Da barriga insistir em chegar na frente. De sentir uma indefinida tristeza do quanto seria inútil telefonar para os pais.
     É tarde para aprender a fazer moqueca. De começar a carreira de astro do rock, de tatuar dragão nas costas, tentar entender o manual de instruções, se entregar a uma nova crença, aprender a cabecear de olhos abertos, desistir de assobiar em público. Mas só para isso, para o resto ainda resta muito e as mangas estão arregaçadas.
     Cada segundo dedicado a um lamento é um perdido de dar risada. Um remorso toma tempo demais, demais.
     Mas calma, a hora ainda não é esta. É porque o relógio, solidário, também anda se confundindo. Não há pressa, ou melhor, não deve haver. O problema é que você não está no comando, quem está é um CDF, um caxias, incorruptível, o bundão que vai cumprir com a tarefa com toda a eficiência, o pé no acelerador, o quanto antes, sem admitir nem uma matadinha de aula para ir ao cinema.
     Chega uma hora em que um aniversário a mais, um a menos, não parece fazer tanta diferença. Só para quem reparou que não havia bexigas coloridas e você precisou respirar duas vezes para apagar todas as velas.
     Mas aí vem um abraço longo, que pausa tudo, a gente se deixa apertar por um tempo que não tem medida, de olhos bem fechados e, quando abre, misteriosamente, muito misteriosamente, vê surgirem sobre a mesa três travessas de brigadeiros e duas de quindins."

Louvado seja Deus que me livrou daquele inferno.

Todas as manhãs têm cara de manhãs, e todas as tardes e noites. Só não têm cara de amores alguns amores.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

A professora de Saúde da minha filha pediu aos alunos que digitassem (para manter o anonimato) o que seria para cada um deles a pior parte das suas vidas, aquilo que para eles fosse escuro e difícil. A minha filha disse que a grande maioria disse que era assistir às brigas dos pais. Eu quis saber, perguntei, tenho pena dos jovens, mas das crianças eu ainda não tinha... fiquei triste por tudo que ouvi. Então, perguntei o que ela havia respondido. Ela disse que não confiava mais em sua família. Engoli seco. Como? Ela disse, "não vocês, você, meu pai e meu irmão, mas toda a outra família que vive no Brasil ". 
Assim corre o rio.

terça-feira, 15 de outubro de 2019




Fiquei mais da metade da minha vida tentando arranjar um lugar especial no coração dela. Tenho consciência disso e ela ouviu-me falar, falar, falar. Hoje, não quero mais falar. Cansei. Há muito tempo reclamo cansaço, há anos, talvez mais tempo que eu pudesse suportar. Se suportei é porque sou forte. Mas eu não quero mais ser forte. Quero ser comum, banal, qualquer coisa. Ser muito desgastou-me. Serei pouco. Na minha família há muita gente pouco. Tenho exemplos. Não vou segui-los, não tenho mais idade para brincadeiras, apenas uso certas figuras familiares como papel de presente ou de parede, bilhete na porta da geladeira, fitinha no pulso, para lembrar-me; adorno; enfeites na árvore de natal para lembrar que é natal.

Tenho em mim um mundão, assim mesmo no aumentativo. Trafego nele como se fosse uma fada branca, uma sereia dos ares, um murmúrio no pântano quando se joga alguma luz. Essa luminosidade a mim pertence. Sou um serzinho mágico. Posso estar ou não estar e continuar sendo. Explicando: hoje, mais cedo, no quintal com a Merci, ouvi sons da cidade do meu pai que está a dez mil quilômetros de distância de mim. Foi um conjunto que durou segundos, mas que é melhor que cocada. Dentro do silêncio, o pio de uma ave, o ronco do motor de um carro, provavelmente certa música que não identifiquei sendo tocada nesse automóvel que passava, umas folhas secas voando e pronto, eu estive em Abre Campo. 

Ela é bonita no papel. Ficarei mais tempo escrevendo sobre ela. 





domingo, 13 de outubro de 2019

Poema de Mia Couto

"Pergunta-me

Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer."

Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'

A porta aberta para a loucura é curva e estreita, mas qualquer um pode passar por ela.


sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Comunismo é uma merda.


A mãe ou o pai comunista inicia em casa a ideologia que Estados abraçam. A mãe ou o pai comunista não suporta o filho fracassado, não suporta assistir ao desmanche de seus sonhos de família perfeita. Então, a mãe ou o pai comunista quer igualdade, mas nem isso sabe fazer pois na realidade desiguala, doa valores, doa tempo, doa os ouvidos, doa inclusive e pior ainda a imagem do filho ou filha que alcançou sucesso, sim, lança aos ventos na ira do desgosto e da impotência aquela ou aquele que arquitetou, pensou, se lascou, economizou, trabalhou, cancelou doidices, seguiu firme atrás de seus objetivos e venceu. A mãe ou o pai comunista na realidade sonha sem contar para ninguém que o filho bem sucedido renuncie a tudo, a sua honra, seus valores, seus sentimentos, seus dinheiros para aplacar a presença voraz do filho ou filha fracassado.

Comunismo é uma merda.

Outubro, 11

terça-feira, 8 de outubro de 2019


Todo amor é passível de morrer porque amor é doce, é calmo, dá conforto, mas também é rígido, amor detesta migalhas, não sabe ser despedaçado, só sabe ser inteiro. Amor não aceita desconsideração, destrato, amor exige porque pode, porque é pleno e quando maltratado prefere partir.

Se tem que se humilhar, não é amor. 

domingo, 6 de outubro de 2019


E então vai dar no jornal local a seguinte nota:

Senhora de cabelos brancos sentada à mesa da cozinha da sua casa durante o terremoto não se moveu para se proteger. Segundo os filhos e o cão Merci, ela havia acabado de se sentar para comer após se levantar uma dezena de vezes para fazer alguma coisa quando se deu a catástrofe natural.

Até o cão procurou abrigo. Ela, não. Segundo consta estava exausta.

"Só pessoas ocupadas ajudam as outras".

Por Roberto Meneghini.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

"Memória __é apenas um nome
inscrito
na sola dos pés.
Vai se perdendo na caminhada".

Nydia Bonetti.