EU DISSE QUE GOSTAVA DE DIÁRIOS?

Fotografia, Suzana Guimarães
Data: Junho de 2020


domingo, 30 de abril de 2023

Kathmandu, a capital do Nepal - a viagem de Suzana.

Algumas coisas não são para a gente, não são para mim, entendi isso após muitas decepções, mas outras são e nos esperam, seja o tempo que for. Esperei 44 anos para ir ao Nepal e cheguei a pensar um dia antes da viagem que meu desejo de criança viria a ser mais outra decepção.

Eu não sei ao certo o que li, deitada na minha cama, aos 13 anos de idade, estudando para prova, acho que de geografia. 

Hoje moro nos EUA, mas nem isso eu quis, fui uma menina sem desejos. Se um dia eu saísse do Brasil seria para ir a Kathmandu a passeio.

Durante anos, a minha mãe me perguntou, você continua com vontade de conhecer o Nepal? Meus irmãos riam. Só mesmo a maluca da Suzana, querer ir ao fim do mundo.
No taxi, em Kathmandu, a caminho da cidade chamada Bhaktapur, onde tem a praça do palácio mais bonita e bem preservada do Nepal, a minha filha disse, lá vamos nós para o fim do mundo. Respondi sem muito pensar, talvez seja o início dele. 

Não descobri na minha viagem por que eu quis ir lá, e também não sei dizer ou tenha as palavras para responder a mim mesma a razão de eu querer voltar e isso não importa. 
Um país do tamanho do estado brasileiro do Acre, onde se falam 150 línguas, uma delas a mais antiga do mundo e eles nem pensam em reinventá-la. Um país saído de um livro de contos extravagantes que ostenta uma bandeira diferente das outras, dois triângulos carmesins, assim é o Nepal, entre dois gigantes China e Índia, incrustado na Cordilheira do Himalaia. Nepal é a terra onde Buda nasceu, é nele onde estão as oito maiores montanhas do mundo, inclusive o Everest.

A diferença de horário do Nepal para o do Brasil é de 8h45min e para a hora da Califórnia, nos EUA, é de 12h45min. O nepalês é genuinamente diferente.

Fomos para a Ásia numa tarde de domingo, pela compania aérea Qatar, saindo de Los Angeles, com conexão em Doha, no Qatar, chegamos no início da madrugada, por volta de 1h30min de terça-feira. Nossos vistos pedimos no aeroporto, 30 dólares por pessoa para o tempo máximo de 15 dias. O aeroporto é pequeno, mas o atendimento é rápido, a polícia é simpática, os viajantes são simpáticos e a noite me esperou tranquila e fresca com lua cheia e eu respirei satisfeita, quis saber se gostava do cheiro da terra e gostei. 
Kathmandu é o caos. O trânsito é caótico. Carros, pedestres, vacas, cachorros vadios, um sem fim de motos, riquixás, tudo circula em total harmonia embora a falta de semáforos e placas (eu vi apenas duas placas de Stop, estão juntas com outra de Go, quer dizer, pare e vá), embora a mão inglesa, ruas esburacadas, muita poluição e muito pó (nepaleses me lembravam meu pai que costumava jogar jarras d'água na rua em frente a casa nos entardeceres de Abre Campo para diminuir a poeira). Não vi sequer uma colisão, embora eu tenha imaginado dezenas delas. O som é de buzinas, é com elas que eles se direcionam e se cumprimentam. O cheiro entre as ruas é de incenso. 
Andávamos tranquilos pelas ruas, não ouvi nenhum pega ladrão, não vi ninguém correndo da polícia. O dinheiro deles é a rúpia nepalesa e um dólar estava valendo 130 delas. Há casas de câmbio em cada esquina, há muito lixo acumulado, as construções são coladas umas nas outras, a maioria das pessoas nas ruas anda de chinelos, mas os estudantes e as estudantes calçam sapatos fechados, vestem terno, calça, camisa e colete e usam gravatas faça o calor que fizer. Em alguns lugares, empregados usam casacão ou blazers e gravatas, o papel do recibo da caixa registradora é 3 vezes mais grosso que o nosso do ocidente, e eles não usam mais sacolas de plástico, são de tecido. Quem trabalha com turismo fala Inglês, inclusive o dono do riquixá. A língua não é um problema, eles querem se comunicar e entendem as nossas mínimas expressões e até repetem nossas palavras estranhas faladas entre nós.
No comércio, a regra é pechinchar e eles esperam que você o faça. O segundo e o terceiro preços estão nas pontas das suas línguas. No Thamel, bairro turístico onde nos hospedamos, tem bookstores, museus, lojas que vendem artesanato, incensos, as famosas facas kukri (meu marido comprou uma), cashmere e pashmina. Aprendi a diferença entre essas duas:  Cashmere é um nome Inglês, pashmina é palavra nepalesa. 

Há restaurantes com cardápio em Inglês e comida internacional e eu recomendo comer Dal Bhat tarkari que é uma sopa de lentilhas com arroz servida em todos os lugares. Momos, outro prato típico nepalês, consiste basicamente numa massinha envolvendo um recheio de legumes ou de carne de galinha moída, cozido no vapor ou frito. Experimentamos as cervejas Gorkha e a Nepal Ice. A comida deles é apimentada. Comi duas vezes uma torta de maçã  riquíssima em condimentos, deliciosa. 
A gente se hospedou no Thamel para ficarmos dentro da agitação nepalesa, e isso foi a melhor ideia que tive. Os hotéis internacionais seriam boa opção, mas eram distantes e mais caros. Ficamos no Kathmandu Guest House. 

Tivemos a sorte de estarmos lá no dia 13 de abril, passagem de ano dos nepaleses. No café da manhã que era um verdadeiro almoço, fomos cumprimentados com felizes Happy New Year! Estávamos então entrando no ano 2080. Por todo o dia houve a euforia típica da véspera de uma festa. No hotel, os empregados decoravam o pátio com lanternas que me lembraram as mexicanas: areia, vela, arames e sacola de plástico. Mulheres passaram por nós vestidas em seus saris, uma delas subiu numa  vespa uber e partiu. 
Eu vi um bode sendo levado para sacrifício na Dubar Square, em Bhaktapur; pessoas em fila carregando oferendas, flores, comidas e incensos. Eu vi muito a cor laranja e  a carmesim. Eu vi cremações públicas em Pashupatinath, local mais importante para os devotos de Shiva; local sagrado dos hindus. Em Pashupatinath, vi os homens santos que se oferecem para posar para fotografias. E no templo Swayambhunath, denominado o templo dos macacos, lugar sagrado para os budistas Newari, vimos lá do alto todo o vale de Kathmandu que era um só e depois do século XV dividiu-se em três reinos independentes: Kathmandu, Bhaktapur e Patan. Em
Patan, meu marido e eu nos sentimos em casa quando visitamos o antigo palácio. A cidade de Patan, também conhecida como Lalitpur, fica praticamente grudada em Kathmandu, separada apenas pelo Rio Bagmati. Nessa cidade, visitamos os tibetanos tecelões, refugiados que vivem no Nepal desde a década de 1950, quando a China invadiu o Tibet. É claro, comprei um tapete! Veio na minha mala de mão, pesando só ele cinco quilos e meio. 
Impensável ir ao Rio de Janeiro e não visitar o Cristo Redentor. Impossível ir a New York e não conhecer a Times Square; ir a San Francisco e não conhecer a Golden Gate Bridge; em Buenos Aires, não assistir a um show de tango; assim como também, em Kathmandu, não visitar Boudhanath, a estupa mais bonita a nordeste do centro da cidade, e é uma das maiores estupas do mundo e o templo budista tibetano mais sagrado do mundo fora do Tibet. Nela, a gente andou como os outros, em sentido horário. Eu não sei eles, mas eu tentei entender o incognoscível. 
O povo é sorridente, feliz e hospitaleiro. Cachos de uvas são carregados em cestas enormes de vime nas bicicletas de seus vendedores; eu vi carnes sendo vendidas naquelas barracas onde se vendem frutas e legumes... e não havia refrigeração ou mosquiteiros. Na hora de atravessar as avenidas, as pessoas caminham juntas enfrentando os motoristas, pensei que íamos morrer. Às vezes, nos locais mais movimentados, um dos pedestres para o trânsito, estende a mão mandando os carros pararem. Juro, mesmo sentindo que ia morrer, eu ri e muito. 
Algumas coisas não são para a gente, mas o Nepal sempre foi para mim. Hoje, eu penso por que não fui antes, só pode ser porque não era a hora e como disse a minha prima A.P.,  aconteceu porque certamente eu tinha méritos acumulados. 

O início do mundo é o caos. Kathmandu é o mais belo caos.