EU DISSE QUE GOSTAVA DE DIÁRIOS?

Fotografia, Suzana Guimarães
Data: Junho de 2020


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

O menino do skate

 

Eu só vi o acidente porque desviei do meu caminho de volta para casa para caminhar até a mesa que tinha um livro aberto sobre ela, no jardim da universidade. Na mesa, o livro tinha suas páginas folheadas pelo vento, era sobre maternidade e nascimento. No chão, estava o marcador de páginas do livro: um cartão grande com a imagem de Jesus Cristo de mãos abertas e delas saía luz. 

Um minuto depois, no máximo, dois, eu vi o rapaz caído no chão, sacolejando a cabeça, entre a pista de carros e a calçada, na pracinha da universidade. Ao lado dele, um skate. 

Noite fria, apenas um carro passou e parou para ver. Um casal de orientais, mais próximo dele que eu, olhava. Foram segundos de choque e impasse. Falei para R que era preciso chamar imediatamente a polícia, fiquei tão nervosa que falei Samu, no lugar de ambulância. A amiga dele o viu de longe, desceu correndo a calçada, gritando seu nome, e o colocou de lado no chão por sobre o próprio braço dele. 

Posso jurar que o tempo parou, a noite, o vento. Ele não parava de tremer a cabeça. Chegou um corredor de rua para ver. Então, R caminhou em direção à pequena torre de luz azul, onde se lê a palavra emergency e acionou a polícia. Foi atendido imediatamente. Eu que tanto caminho naquela universidade jamais reparei aquelas torres espalhadas para chamar socorro. A pessoa do outro lado fazia perguntas, mas já sabia onde estávamos. O corredor de rua e o casal também falavam ao telefone. 

Foi então que vi a amiga debruçada sobre ele, de costas para mim, duas asas brancas abertas e entre elas a palavra angel, na blusa de frio. Um minuto se passou e ouvimos as sirenes. Chegaram dois carros da polícia e atrás deles uma ambulância. 

Falei, só saio daqui após saber que está vivo. Ele parou de chacoalhar a cabeça um pouco antes da polícia chegar. A amiga ficou calma. Havia no ar alguma densidade, eu poderia tocá-la de tão real. 

Quando os policiais saíram dos carros e se aproximaram, passou a magia. Tudo se tornou a realidade de um acidente. 

Retomei meu caminho. O livro deve ainda estar lá, balançando suas folhas. Voltei para casa, um pouco menos, um pouco mais, pensando na vida. É bom estar aqui.


Fevereiro, 17 (no Facebook)