EU DISSE QUE GOSTAVA DE DIÁRIOS?

Fotografia, Suzana Guimarães
Data: Junho de 2020


terça-feira, 15 de outubro de 2019




Fiquei mais da metade da minha vida tentando arranjar um lugar especial no coração dela. Tenho consciência disso e ela ouviu-me falar, falar, falar. Hoje, não quero mais falar. Cansei. Há muito tempo reclamo cansaço, há anos, talvez mais tempo que eu pudesse suportar. Se suportei é porque sou forte. Mas eu não quero mais ser forte. Quero ser comum, banal, qualquer coisa. Ser muito desgastou-me. Serei pouco. Na minha família há muita gente pouco. Tenho exemplos. Não vou segui-los, não tenho mais idade para brincadeiras, apenas uso certas figuras familiares como papel de presente ou de parede, bilhete na porta da geladeira, fitinha no pulso, para lembrar-me; adorno; enfeites na árvore de natal para lembrar que é natal.

Tenho em mim um mundão, assim mesmo no aumentativo. Trafego nele como se fosse uma fada branca, uma sereia dos ares, um murmúrio no pântano quando se joga alguma luz. Essa luminosidade a mim pertence. Sou um serzinho mágico. Posso estar ou não estar e continuar sendo. Explicando: hoje, mais cedo, no quintal com a Merci, ouvi sons da cidade do meu pai que está a dez mil quilômetros de distância de mim. Foi um conjunto que durou segundos, mas que é melhor que cocada. Dentro do silêncio, o pio de uma ave, o ronco do motor de um carro, provavelmente certa música que não identifiquei sendo tocada nesse automóvel que passava, umas folhas secas voando e pronto, eu estive em Abre Campo. 

Ela é bonita no papel. Ficarei mais tempo escrevendo sobre ela.