Você atende ao telefone, aceita um convite, espera a hora, se apronta, cinco minutos antes, enquanto você escova os dentes, antes de ganhar a rua, o telefone toca. Você é dispensada.
Chega aqui, chega perto, eu gostaria muito, apesar de toda a afeição que lhe tenho, de todo carinho, eu gostaria muito de esfregar minha escova de dentes em sua cara. Talvez, limpe, talvez, não. O que pouco importa.
Mesmo assim, eu saio, ganho a rua, estou me despedindo, agora é assim, vivo me despedindo desta maldita cidade.
Isso já é passado, ganhei várias ruas, enchi a cara, bebi o meu pai, falei um monte de coisas, tudo tão liquidificado em mim que hoje parece mosaico mal encaixado. Dois voos, três países, e ele disse que eu era independente. Dói nele a independência alheia porque isso dói em escravos. E o escravo pensa, muitas vezes, em escravizar também.
No aeroporto do Panamá, um pai pergunta-me pelas horas. Atenta ao meu IPad, tentando avisar a minha família sobre a minha posição no espaço, ouço-o falando com a filha e comigo... respondo que sou mãe e entendo. A menina fala algo para ele, nem percebo. Ele pensa que percebo. Ele chama a minha atenção, diz em Inglês que ela não podia ouvir a palavra mãe porque sua mãe havia morrido. Fecho o IPad. Pergunto a ela o seu nome. "Isadora". Pergunto a sua idade: "Seis anos". Respondo, "Conheço uma Isadora e a minha filha tem seis anos." O pai diz que, em São Paulo, antes do voo, saiu para dançar com uma amiga, mas que não havia sido perfeito porque a amiga havia acabado de perder o pai. Respondi: "Eu também perdi o meu, estou voltando do enterro dele". Ele pergunta meu nome. Respondo, "Suzana". Pergunto o dele: "Roberto". Eu rio e digo, "O nome do meu marido e de um dos meus filhos". Abro o IPad para que a menina veja fotografia da minha filha, ele questiona uma das minhas fotos. Respondo, "É minha, escrevo, e costumo usá-la muito". Roberto então abre o seu IPad e imediatamente mostra-me uma linda mulher de cabelos curtos, diz que é uma atriz americana, pergunto o seu nome, ele não sabe. Diz que sou eu. Eu rio. Isadora mexe na mochila de mão dos dois, ele diz para ela parar porque ele é neurótico, "Estamos num aeroporto", começo a rir, "Também sou neurótica em aeroportos". Pergunto onde ele ficará na Califórnia, "Em Anaheim", respondo, "Moro lá". Ele diz que bebeu muito na boate com a amiga... eu disse que uma dose de Tequila e três Vodkas com limão e gelo foram pouco para mim, "Três copos grandes... parecia suquinho...". Pensar que menti para a minha prima, "Foi apenas uma pequena dose de Tequila...".
A Vodka fez milagres, além de um pouco de dor de cabeça, consegui despedir-me da minha mãe sem desmontar-me em minhas próprias pernas. Bem mais tarde, bem mais tarde, o liquidificado de palavras tentou conter meus pensamentos voejantes, mas eu dormi.
Em Los Angeles, um mural gigante fascinou-me, algo atualmente absurdamente raro (nada me fascina): a menina mergulhada em águas claras tenta alcançar uma bola enquanto desço a escada-rolante. Ela sorri e nada, nada, os braços buscando a bola. E tudo some, a menina, a bola, a água, e eu, pela rampa do aeroporto que leva à rua. Mal enxergo, meus olhos estão molhados pelas águas daquela menina.
Dói nele porque eu aprendi a não mais pelejar; dói nele porque tenho ânsias de vingança, porque converso com estranhos; nada mais me tranca.
Cabe em mim, meu bem, toda a minha vida. A falta de medida está nos outros.
Outubro, 14