Escrevi "sou engodo", dias atrás. E hoje, o que sou? Já venho deixando de ser há algum tempo... passei a ser estrangeira, passei a ser escritora. Fui deixando-me de lado, devagarinho... por tantas razões que resultou tudo em motivo algum. Fui à farmácia, trocar compras feitas para o meu pai por outras coisas. Até então, o engodo que era eu forçava-me a deduzir que ele estaria em algum canto da casa ou no hospital, mas ele não está em lugar algum que eu possa ver. Até então, o engodo que era eu pegou seus óculos de grau para guardar de recordação, algumas peças de roupa... até então, eu acreditava que não seria fácil, mas seria suportável. Não é. Dói tanto que o engodo se foi. Parada na farmácia, o chão parecia brilhar demais, as pessoas a incomodar demais. Senti-me vazia, vazia, um saco de pano a murchar... sem um fio de concentração, razão, qualquer tipo de entendimento. Um menino de três ou quatro anos parou o meu carrinho, quando eu saía da fila do caixa, e comentou que ele estava muito cheio, e ele tentava abraçar a sacola. Fiquei forçando um sorriso para ele e tentei dizer algumas coisas, mas eu queria mesmo era me ver livre do menino, do carrinho, daquele local, do caminho.
Meu pai disse-me, no dia seguinte ao sepultamento da minha avó materna, porque eu comentei que todos estavam, sentados à mesa, muito falantes, comilões e barulhentos, ele disse-me, "a vida se impõe".
Pai, a vida se impõe com força demais, tanta, mas tanta, que eu perdi as poucas referências, e preciso com urgência encontrar alguma, para deixar de ser engodo, para deixar de ser fantasma, para ocupar o enorme espaço que você deixou.
Outubro, 2