EU DISSE QUE GOSTAVA DE DIÁRIOS?

Fotografia, Suzana Guimarães
Data: Junho de 2020


sábado, 28 de dezembro de 2019


Ontem, sem motivo algum pensei que encontraria P. na praia dos cachorros, talvez porque ela gostasse de cachorros, tivesse sempre alguns ou mesmo porque ela gostava de fazer programas, era uma pessoa ativa. No ano passado, enviei mensagem privada via Facebook - chequei, hoje - sim, enviei algumas palavras mostrando que gostaria de revê-la, mas ela nada respondeu. Pensei que o motivo do silêncio fosse o simples fato de que ela não interagia em redes sociais nunca. R disse, “ela pode estar morta”. Em 2013, fiz um jantar e a convidei, ela me disse que não estava bem, que estava com depressão. Naquele ano, meu pai ficou mais doente do que estava, faleceu, e nos anos seguintes, eu vivi a montanha russa de todos os meus sentimentos, todas as pessoas foram entrando e saindo da minha vida e por eu insistir, voltavam, para depois se negarem novamente para mim. Depois vieram várias perdas financeiras, adaptações, a minha filha era o bebê se tornando menina e meu filho, a criança se tornando homem, algumas mudanças em pouquíssimo espaço de tempo... um ritmo de vida enlouquecedor que prefiro esquecer. Então, eu não mais a vi. Naquele 2013, ela pediu para eu ir a casa dela, para ensiná-la pela centésima vez a fazer mousse de maracujá. Eu não pude ir, mas R foi com nosso filho. Ela criava o sobrinho que era colega de sala do meu filho. Depois, meu filho trocou de colégio, depois eles não eram mais amigos, depois tinha a mulher dela que não era simpática comigo, depois tinha tanta coisa, mas quando eu não falava nada de Inglês foi ela quem me recebeu com os braços abertos, oferecendo amizade, passeios, ajudas, presentes, tudo o que nem os mais íntimos costumam ser ou fazer... Ontem, eu pensei nela como sempre costumava fazer, desejando reatar o contato, mas só pensei. Ontem à noite, uma colega distante do meu filho, do último ano de High School, enviou uma fotografia para ele. Nessa foto, meu filho aos nove ou dez anos de idade ao lado do sobrinho da P. Meu filho perguntou, “ Como você tem essa foto?”. Longa história. Na casa dela, as duas mães dela conversavam sobre os amigos do passado dele, do sobrinho, mencionaram o menino que falava Português. Ela disse que conhecia aquele menino... A mãe adotiva dela havia se casado, dois anos atrás, com a viúva de P... Hoje, pela manhã, queríamos entender a história. Tudo estava confuso. E eu lavava a louça da cozinha imaginando que P., ao nos encontrarmos, diria que meu Inglês melhorou muito... mas P. se foi, faleceu dois anos após aquele jantar em minha casa. A viúva se casou com a mãe da colega chinesa do meu filho.

Eu pensava que P. estaria sempre ali, aqui, que poderíamos a qualquer tempo reatar aquela amizade começada assim que cheguei no país, em 2009... ela era mais nova que eu, a nossa cidade não é uma megalópole, apesar de que eu estranhava muito nunca encontrá-la casualmente como costuma ser... eu pensava que a depressão mencionada por ela fosse algo passageiro por ser recorrente, eu pensava que haveria sempre todo o tempo do mundo quando eu me lembrava dela, mas P. está morta.

E eu estou aqui com um nó na garganta, sentindo um buraco na alma, vendo um trem em movimento e eu parada sem entender.