EU DISSE QUE GOSTAVA DE DIÁRIOS?

Fotografia, Suzana Guimarães
Data: Junho de 2020


sábado, 19 de outubro de 2019

Texto de Cássio Zanatta.

Da hora
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     "Chega uma hora em que não é mais desconcertante rever o grande amor. Mais provável ser atropelado na ciclofaixa. Tempo dos cabelos irem desistindo pelo caminho, das ilusões respirarem por aparelhos e de se munir de toda a paciência que resta, quando alguém discute política como se fosse a coisa mais importante.
      O tempo de tudo que ainda for possível. Da urgência de experimentar uma fruta desconhecida. Caminhar por uma cidade onde nunca se esteve. Hora de dar menos autoridade ao despertador e de ficar horas matutando, tentando se lembrar do nome do colega de Ginásio. Quando o dia resolve ter a duração de 19 horas e cada sete anos passam a caber em cinco. Da sesta mais por obrigação que por opção.
      Descobrir que já leu o livro depois de 282 páginas, faltando apenas 17. Ter todo o tempo do mundo para ir a Machu Picchu, mas ter imensa preguiça de subir aquele tanto. Fazer com o molho na camiseta o que Pollock fazia com as tintas na tela. Esquecer as caneladas e achar que tudo foi leve e bom.
     A hora em que toda gratidão humilha qualquer obrigação.
     Quando se leu tanto livro, meu Deus, e de cada ida à livraria nasce uma aflição do tanto que ainda se quer ler, mais o remorso de nunca ter lido Joyce. Da barriga insistir em chegar na frente. De sentir uma indefinida tristeza do quanto seria inútil telefonar para os pais.
     É tarde para aprender a fazer moqueca. De começar a carreira de astro do rock, de tatuar dragão nas costas, tentar entender o manual de instruções, se entregar a uma nova crença, aprender a cabecear de olhos abertos, desistir de assobiar em público. Mas só para isso, para o resto ainda resta muito e as mangas estão arregaçadas.
     Cada segundo dedicado a um lamento é um perdido de dar risada. Um remorso toma tempo demais, demais.
     Mas calma, a hora ainda não é esta. É porque o relógio, solidário, também anda se confundindo. Não há pressa, ou melhor, não deve haver. O problema é que você não está no comando, quem está é um CDF, um caxias, incorruptível, o bundão que vai cumprir com a tarefa com toda a eficiência, o pé no acelerador, o quanto antes, sem admitir nem uma matadinha de aula para ir ao cinema.
     Chega uma hora em que um aniversário a mais, um a menos, não parece fazer tanta diferença. Só para quem reparou que não havia bexigas coloridas e você precisou respirar duas vezes para apagar todas as velas.
     Mas aí vem um abraço longo, que pausa tudo, a gente se deixa apertar por um tempo que não tem medida, de olhos bem fechados e, quando abre, misteriosamente, muito misteriosamente, vê surgirem sobre a mesa três travessas de brigadeiros e duas de quindins."