EU DISSE QUE GOSTAVA DE DIÁRIOS?

Fotografia, Suzana Guimarães
Data: Junho de 2020


quarta-feira, 5 de dezembro de 2018


No inverno chove. Faz silêncio na casa. Faz frio. Aquecedor central queimou. Não sei como ligar a lareira à gás. Ainda engatinho nessa casa. Gosto. Tenho todo o tempo do mundo. Sei quando as coisas são para muito tempo. Faz tempo quieto. Há panos brancos no varal. Tenho varais. Só falta dizer que tenho um cão. Faço torradas, cozinho ovos enquanto masco nuts. Faz tempo infinito em mim. Faço listas. Tenho um anjo. Amanhã é um segredo.

Dez anos se passaram. Tempo exato profetizado por ela, a minha mãe. Eu não sei como eu consegui largar tudo para trás e recomeçar num país estranho com duas crianças. Não sei. Ela previu uma década. Eu considerei muito, imaginei cinco anos. Esses anos acumularam-se em uma única memória de tudo vivido, aglutinado. Uma porta se fecha e eu só vejo a porta. Assim ficou a única memória, tampada pela porta concreta. Fácil é voar. Difícil é sustentar uma família em suas próprias pernas e isso desenha-se assim: alarmes diversos para não esquecer, comida, remédios, reuniões, buscas. Mudanças, o entrave da língua, o novo mundo. Outros amigos. Outros desejos. A solidão. Os problemas. Alegrias, sim, claro, mas o cuidado na dose... excessos podem aniquilar. As surpresas. Os acertos e desacertos. Uma história. Quatro.

O silêncio da casa é a extensão da minha alma. Chove. Sou feliz porque sou forte. Sou anja. Amanhã não será surpresa.